Crónica de Um Amor Apregoado - Prémio Dinis da Luz
Crónica de Um Amor Apregoado - Prémio Dinis da Luz
Publicado em 25 Janeiro, 2017

Por Joana Moniz Matos

Crónica vencedora do Prémio Dinis da Luz 2016

 

CRÓNICA DE UM AMOR APREGOADO

 
Dizem que a pior maneira de ficar na ilha, é saindo dela…

Garanto-vos que é verdade. E a verdade, mais do que nos fazer sofrer, corrói. Corrói de tal forma brusca e intensa que acabamos por sentir um certo prazer nesse sofrimento constante que nos tira o folego. Esse sofrimento indiscritível a que o Povo Lusitano decidiu chamar saudade. E eu senti tantas – mas mesmo podrizes – de saudades. Desde o banco de cimento virado para a encosta e para o nosso, tão nosso, manto azul na Borda da Ladeira (que, para quem não sabe, é um miradouro que fica situado a meio do concelho, na terra que me viu crescer) até à fatia de pão caseiro a escaldar na mão e a transbordar de manteiga, sempre que chegava a sexta-feira…
Mas eu parti. Entre o esconder das lágrimas que teimosamente escorriam pelo meu rosto fora e o rasgar de um sorriso que parecia não ter limites nem fim. Parti. Não fui para a guerra. Não emigrei. Parti. Apenas parti porque estava na hora de sair. De deixar. De ir.

Fui, sabendo que voltaria, e por isso mesmo pensei que assim as coisas ficariam mais fáceis de suportar. Até hoje não consigo saber se isso realmente ajudou em alguma coisa mas fiquei a saber de muitas outras. Descobri que uma das minhas melhores decisões foi ter escolhido a área que escolhi estudar e dar vida porque se há coisa em que me tornei rapidamente foi numa verdadeira Relações Públicas dos nossos pequenos grandes ilhéus, situados no meio do Atlântico.

Where are you from?
I’m from Portugal, but not from Lisbon or Porto. I’m from the islands. Azores.
From the islands? Really? Portugal has islands?

E a partir daí, uma conversa que tinha por hábito terminar num espaço de três a cinco minutos, facilmente se transformava numa conversa de horas, e horas, e horas… Uma conversa com direito a mapas, fotografias e vídeos. Uma conversa onde o entusiasmo dominava e ainda havia espaço para uma pitada de orgulho. Como poderia eu não sentir orgulho das ilhas, da minha ilha, do meu Nordeste?

Yes. We are nine islands. I’m from São Miguel and our main city is Ponta Delgada.
That’s sound really nice. And you live in the city?
Actually, no. I live in the farthest place comparing to the main city. I live in Nordeste.

Ficavam apreensivos. Achavam a ideia de viver longe da cidade principal algo terrivelmente assustador – mas depressa a opinião deles mudava. Como poderia não mudar? Mostrava-lhes tudo.

O Salto da Farinha, a Ribeira dos Caldeirões, a Vigia das Baleias, o Pico da Vara, a Borda da Ladeira, a Senhora do Pranto, a Boca da Ribeira, a Ponte dos Sete Arcos, a Praça, os Viveiros, os miradouros, as fajãs, os trilhos…

Falava-lhes de como era bom acordar com o chilrear dos pássaros; de não passar um dia sem ver o mar; de parar o carro no meio da estrada para uma vaca poder passar; de morar entre as encostas altas e verdejantes; de nas noites de verão ouvir os cagarros a voar até ao Pico da Vara; de ter os mais belos nasceres e pores-de-sol; de termos um pássaro só nosso, tão pequenino quanto misterioso; dos nossos recantos repletos de flores; dos serões nos jardins ao som das nossas tão emblemáticas filarmónicas, grupos de cantares e folclores; de pertencermos todos ao mesmo concelho e ainda assim falarmos de forma diferente (às vezes parece que comemos as palavras, com a pressa que as dizemos; outras vezes, arrastámo-las dizia-lhes, e eles respondiam-me com um sorriso tão curioso que eu achava delicioso).

Falava-lhes da tranquilidade, da paz interior, do sentimento de pertença. Do que é ser nordestense, do que é ser um dos nossos, do que se sente por fazer parte deste nosso cantinho a nordeste da Ilha.

Falava-lhes daquilo que temos e que mais ninguém tem; daquilo que somos e mais ninguém é.

Ficavam encantados. Diziam que eu era uma rapariga cheia de sorte por viver no Paraíso. E eu concordava, com os olhos a brilhar, de coração ao alto, quase a rebentar de tanto orgulho e com um sorriso tão grande nos lábios que parecia não caber no meu rosto…

Regressei. E depois de algum tempo longe do verde, das cascatas, dos canteiros com flores, dos cagarros, dos trilhos e do mar, consigo sentir tudo muito mais de perto. Bem mais de perto. É como se tudo o que eu tivesse espalhado aos quatro ventos, lá, bem longe, naquele lugar do mundo tão grande e agitado, fizesse ainda mais sentido. Cada vez mais sentido.

Pessoalmente, acho que merecemos tudo. E é precisamente por achar que merecemos mais e melhor que não consigo suportar a ideia de nós, nordestenses, permanecermos, muitas das vezes, de braços cruzados, à espera que a beleza do nosso cantinho a nordeste da ilha nos salve das marcas do tempo e do espaço.

Devemos parar de ser egoístas ao ponto de acharmos que nada é preciso ser feito só por já vivermos no Paraíso – porque para viver não basta existir, é necessário acreditar e, acima de tudo, saber defender aquilo que tanto acreditamos.

Por quem nos visita e, principalmente, por nós mesmos que aqui nascemos, crescemos e vivemos; que somos parte daquilo que é o Nordeste.

Regressei e estou aqui, na terra que me viu crescer, porque mais do que acreditar naquilo que temos, acredito naquilo que somos.

E, para mim, somos enormes.