Entrevista Paula Duarte
Entrevista Paula Duarte
Publicado em 2 Fevereiro, 2017

ENTREVISTA Paula Duarte
Doente oncológica

 
Em 2004 foi detetado um cancro da mama a Paula Duarte. A doença apanhou-a de surpresa – como acontece a quase todas as pessoas que passaram por esta situação – e manifestou-se num estado já muito grave, tratando-se de um tumor abrasivo além de pouco comum.
Do diagnóstico à “cura” do cancro, a paciente relata-nos as diferentes fases da doença, dando-nos o seu testemunho sobre o que é ser um doente oncológico e sobre algumas práticas que poderiam ser implementadas a bem do conforto psicológico destes doentes.
Esta entrevista surge a propósito do Dia Mundial da Luta Contra o Cancro, que se assinala a 4 de fevereiro, tendo a Paula Duarte aceitado o convite do município do Nordeste no sentido de dar o seu contributo para o esclarecimento da doença.
A Paula Duarte é funcionária da Escola Básica e Secundária do Nordeste, é natural da freguesia da Salga e reside na Lomba da Fazenda.

 
 

Que tipo de cancro teve?
O meu cancro chamava-se Doença de Paget Mamária. É raro e responsável por 1% de todos os cancros da mama.

 
Como lhe foi detetado o cancro?
Foi detetado através de um líquido que me saiu do mamilo. Ao reparar no líquido, fui ao Centro de Saúde falar com a minha médica de família. Na altura, disse-me que talvez fosse uma alergia aos soutiens (eu usava sempre o mesmo tipo de soutien) e que desse ali Betadine.

Fui para casa, fiz as aplicações indicadas, mas não passou. Voltei ao Centro de Saúde, tendo a médica de família pedido a avaliação de um dos médicos que se encontravam de serviço. A avaliação do médico foi que deveria tratar-se de uma alergia qualquer, e deu-me a medicação para a alergia. Mas, como tenho uma prima médica em Ponta Delgada, que é ginecologista, telefonei-lhe a dar-lhe conta do estado em que eu me encontrava. Disse-me para aplicar no mamilo Fucidine e Betadine, durante sete dias. Depois disso, caso persistisse, deveria ir lá a baixo . Na altura, até usava umas compressas, uma vez que me incomodava o líquido no soutien.

Passaram-se os sete dias, e tal foi o meu espanto verificar que continuava tudo igual. Fui para Ponta Delgada, e a minha familiar fez-me uma biopsia ao líquido e ao sangue do mamilo. Logo que ela me fez a biopsia, adiantei-me a dizer que aquilo ia ser um cancro, mas ela chamou-me de doida, dizendo que não seria nada disso.
Depois disto, vim para cima e aguardei o resultado do exame.

 

Até ir à consulta do médico de preparação para a operação, tinha sempre na cabeça que me tinham trocado os exames, que aquilo não podia ser comigo.

 

Como reagiu e como reagiram as pessoas mais próximas de si?
Quando chegaram os benditos resultados, fui novamente à consulta a Ponta Delgada.

Entrei para falar como a médica e fui logo dizendo que era um cancro, mas ela voltou a dizer que não, que não era nada disso.

“Se eu vou é ter isso, até já preparei a minha cabeleira e tudo”. Disse-lhe nessa consulta. Mas, claro, disse-o na expectativa de que não ia ser comigo.

Ela lá abriu a carta, e começa a ler “paget, paget, paget…” Pega no telefone e liga para uma colega sua e, a seguir, para a doutora que fazia as mamografias. E depois ainda para outro colega. E eu a ouvir aquilo tudo. A seguir a isto, saiu do consultório comigo, dizendo às pessoas, que se encontravam na sala, “olhem, se quiserem esperar esperem, se não quiserem, eu tenho um assunto urgente a ser resolvido agora.”

Foi comigo para a doutora da mamografia. Foi-me feita uma ecografia, onde foram detetados vários gânglios, incluindo três na axila. Naquele momento, senti o mundo a desabar sobre a minha cabeça… Só pensei “vou morrer, não tenho mais hipóteses.”
A doutora, por sua vez, só me dizia, “tenha calma, tenha calma”.

Foi uma grande especialista e uma grande amiga. No fim do exame, tirou-me a chave do carro, porque não queria que eu fosse a conduzir para cima. Quanto a mim, ia, nos corredores do hospital, de lado a lado. Nessa hora, encontrei uma Paula, que é daqui de cima, que me perguntou o que se passava, e a minha prima contou-lhe. A partir daí, nunca mais me largou, foi a minha pedra naquele momento, até irem buscar-me a Ponta Delgada.

A seguir fui operada, aqui em Ponta Delgada. Mas, até ir à consulta do médico de preparação para a operação, tinha sempre na cabeça que me tinham trocado os exames, que aquilo não podia ser comigo.

Quando o médico me chamou, disse-me que não tinha nenhuma hipótese e que era para amputar, o quanto antes. Fiz a amputação da mama. Tinha que estar lá cinco a sete dias antes e estive 12.

Tinha o meu filho, que nem tinha dois anos, tendo sido um dos grandes problemas com que me deparei: quando eu o podia abraçar, antes disto tudo começar, não o fazia tanta vez porque tinha a casa para arranjar ou as comidas para fazer. E quando o quis abraçar, naqueles momentos, não podia pegar nele ao colo.

Foi um choque muito grande para as pessoas. A minha mãe e a minha irmã não eram de falar no assunto, mas eu via-o no silêncio e sabia que choravam depois. O meu filho quando foi ver-me  – porque eu queria vê-lo – não subiu ao piso onde eu estava internada, convencido pela enfermeira de que havia muitos bicharocos lá em cima. Então, desci. Quando ele me viu, foi na corrida para me abraçar, mas, com o robe e os dois drenes, nem podia pegá-lo ao colo. Foi bastante difícil. Uma das estratégias que arranjei foi trabalhar a mente. Tive uns tempos em que não me via ao espelho, fiquei mal com o espelho.

 

Um momento difícil do cancro é a queda do cabelo. Cai de hoje para amanhã.

 

Psicologicamente, como foi gerindo a situação?
Trabalhei a mente. E tentei trabalhar sempre, não fiquei em casa. Uma das soluções que encontrei foi fazer renda xilena na Casa de Trabalho do Nordeste. Enquanto ali estava, tinha a cabeça ocupada.

Ainda estava com os pontos, e disse ao médico que tinha de ir trabalhar, caso contrário entraria em paranoia. Quando me deu alta, eu já estava a trabalhar há muito tempo. Enquanto estava aqui na escola com as crianças estava bem.
Um momento difícil do cancro é a queda do cabelo. Cai de hoje para amanhã.

 
Do diagnóstico à cura, a que tratamentos teve de ser submetida e por quanto tempo?
Quando vim da operação, tive de vir para a Oncologia. Pertenci à família da Oncologia e, depois, na Oncologia, o médico disse-me que tinha uma infeção, sobre a qual não havia tempo a perder, uma vez que o tumor era abrasivo e diferente. Dada a infeção, não poderia fazer o tratamento e, assim, mandou-me para casa. Vim para casa, fiz o tratamento da infeção e então voltei para baixo. Tive cinco tratamentos de quimioterapia para fazer – que não desejo a ninguém, nem aos animais, é horroroso – mas fiz só quatro.

Após as sessões de quimioterapia, fui ao continente fazer a radioterapia. Fiquei com um tratamento pendente, caso precisasse de o levar. No continente, estive 5 semanas, sendo um tratamento que não custa nada. Estive numa clínica, que eu chamava de hotel cinco estrelas. Os profissionais de saúde eram muito jovens, tão amigos e tão preparados para lidar com este tipo de pessoas, porque nos tornamos pessoas muito frágeis, somos como porcelana. Quando as pessoas nos dizem “coitada”, é horroroso, o coitado nisto é péssimo.

 
Ficou com medo de que os tratamentos não resultassem?
Como eu via a correria dos médicos, a primeira reação que tive foi essa, medo de que não resultasse. Além disso, na primeira consulta, a enfermeira chama-nos e informa-nos do que nos vai acontecer: a queda do cabelo, os vómitos e outros sintomas. Informou-me de que o tratamento feito com capacete de gelo provavelmente evitaria a queda do cabelo, e eu, claro, optei pelo capacete. Colocou-me o capacete de gelo na cabeça – eu tinha de estar quatro horas com aquilo na cabeça – e aos 10 minutos não aguentei o frio (era muito frio). Pensei e disse à enfermeira, que mais cabelo menos cabelo não importava.

Eu via as máquinas a apitar e lá iam as enfermeiras a correr, tendo por vezes de chamar o médico. Tinha medo de ouvir o apito da máquina, por ser sinal de que não estava a levar o tratamento (a quimioterapia) e se não o estivesse a levar não sobrevivia.

 

Atrevo-me a solicitar que a equipa da Consulta de Enfermagem à Pessoa com Cancro da Mama lute pela alteração de um sistema redutor ao nível do acesso à cirurgia de reconstrução da mama.

 

Que avaliação fez na altura do pessoal médico e dos hospitais que a assistiram?
Em Ponta Delgada, todas as vezes que eu saía das consultas de oncologia, ia ver a enfermeira chefe (Olívia) que além de enfermeira foi irmã, foi amiga, foi tudo.
Deixava-me passear naqueles corredores. Nos meus doze dias, fiz as minhas caminhadas: ia para baixo, ia à capela e voltava para cima. Ela, às vezes, dizia-me “vai ali ao híper…”. E eu lá lhe respondia “ó senhora, como é que eu posso ir ao híper! Eu não posso.”

Dei-lhe sempre os meus louvores. Como não tinha escola, não conseguia manifestar-me através dos jornais, mas manifestava-me através do que sentia por elas. Mesmo a enfermeira que me assistiu – porque ela largava de comer para me fazer o penso – ainda hoje é uma das pessoas que me abraça e me beija, quando nos encontramos, com aquela amizade.

Há pouco tempo, fiz um voto de louvor às enfermeiras da Consulta de Enfermagem à Pessoa com Cancro da Mama, pois quando sou atendida nas consultas sinto, por parte daquelas técnicas de saúde, uma extrema disponibilidade e atenção para me auxiliar neste doloroso processo, aceitando, apoiando e valorizando todas as manifestações emocionais e desenvolvendo todos os esforços para conseguirem disponibilizar próteses mamárias externas, soutiens adequados a estas próteses, ou outros materiais e apoios necessários.

Ficamos muito sensíveis a tudo ali, e elas é que são o nosso braço direito para nos dar força. Falava com a enfermeira Ana, esta semana, e ela dizia-me quantas pessoas saem dali a dizer vamos fazer isto e aquilo na vida, mas depois chegam a casa e a família, os filhos e os maridos não ajudam. Assim como, aquelas pessoas que deixaram sair com vida, e que depois encontram mortas.

Uma pessoa deixa de se importar com a imagem, não se importa consigo. Ninguém imagina a falta de uma mama, psicologicamente é a parte mais feminina da mulher, falo por mim.

Atrevo-me a solicitar que, em prol do nosso bem-estar, para doentes que ainda não fizeram reconstituição mamária, que a equipa da Consulta de Enfermagem à Pessoa com Cancro da Mama lute pela alteração de um sistema redutor ao nível do acesso à cirurgia de reconstrução da mama e pelo direito à opção de escolha para estas reconstituições, não nos limitando às opções da realidade insular, mas sim abrindo-nos um leque de opções mais amplo no continente português, sem querer com este pedido ferir suscetibilidades, pois reafirmo que o HDES tem excelentes profissionais, nas mais diversas áreas.

Reconheço também a ajuda da equipa do Dr. Rui San Bento; das secretárias Graça e Mena; da enfermeira Belina. Agradeço e reconheço, igualmente, todo o apoio e compreensão do conselho executivo de então da escola, bem como do atual, que me têm atribuído serviços moderados e de acordo com a minha condição.

Não posso deixar de reconhecer o apoio permanente e aconselhamento da minha médica de família, Dr.ª Gabriela Amaral.

 

Às vezes não consigo ver-me com uma blusa e vou trocar por outra mais larga, sinto-me desconfortável comigo.

 

Passar por uma situação tão difícil trouxe algumas alterações na sua forma de viver?
Muitas. Falo muito no exemplo da dedicação à casa. Hoje, eu fecho a minha casa com camas por fazer e a loiça por lavar. É-me indiferente. Acho mais importante sair e dar um passeio ou encontrar-me com alguém do que propriamente estar a cuidar da casa. Outra das coisas, são os esforços físicos. Fui preparando a mente para o facto de não poder pegar em coisas pesadas. Passei a viver mais a parte espiritual do que propriamente a parte material.

Uma situação que me preocupa bastante é a própria Liga . Eu própria já tive sessões com a Liga. Transmitem a ideia de que se a pessoa chegou ao quinto ano venceu, não morre. É Mentira. Nós não morremos, o que morre é a mente. O apoio psicológico para encarar o futuro é o que conta mais.
Lamento que a Liga Portuguesa Contra o Cancro dos Açores (que apresenta como sendo um dos seus principais objetivos dar continuidade ao Movimento “Vencer e Viver”, que consiste no apoio a doentes oncológicos com cancro de mama) seja uma instituição esquiva e pouco atenta aos pedidos e anseios de pessoas que vencerem o cancro da mama e que não nos apoie devidamente.

Eu estou com esta doença e fiquei sensível. Qualquer coisa me magoa e mexe com a minha autoestima. Às vezes não consigo ver-me com uma blusa e vou trocar por outra mais larga, sinto-me desconfortável comigo.

Uma das situações que me chamou à atenção, foi um certo dia ir ao Aquaparque de Vila Franca do Campo – não tinha um soutien porque são bastante caros, custa à volta de 120/130 euros – e fui de t-shirt e um calção. Tal foi o meu espanto quando o rapaz que trabalhava no recinto se dirige a mim, dizendo que eu não podia estar com aquela roupa ali. E respondi-lhe “sabes que eu não tenho uma mama…?” Nesse momento, o rapaz ficou um pouco estático. Acrescentei que não tinha uma mama e que não tinha fato de banho para ir ali, e que quando entrei no recinto não me tinha sido dito que quem não tinha uma mama não podia entrar. Acabei o dia e fui-me embora, mas, passando-se o mesmo com uma pessoa que não funciona como eu tento funcionar, é a morte do artista. Acho que a Liga deveria trabalhar mais a parte psicológica das pessoas.

 
Tem preocupações especiais de combate ao reaparecimento da doença?
Uma das coisas que fiz passou por ter muito cuidado com a alimentação. Passei a comer mais vegetais e legumes. Das carnes, apenas como frango, porque dizem que as outras carnes são mais prejudicais para a saúde. Bebo bastantes líquidos e faço muitas caminhadas.

 
Que mensagem deixa às pessoas que neste momento lidam com a doença?
Que vão em frente, que somos capazes e que quem não o consegue que peça ajuda. Não se fechem em si próprias. Uma das coisas que eu também deixei foram os antidepressivos. Pensei: se eu venci isto sem comprimidos, vou vencer agora sem eles.

Quando não encontramos apoio na Liga vamos ao hospital. Quando não encontramos no hospital vamos às assistentes sociais, que são preparadas para isso. Devemos também encontrar outras pessoas amigas. Se eu sei de alguém que fez esta operação, tento ligar para essa pessoa e se precisar de ajuda estou aqui.

 
E para todos nós – porque ninguém está livre de passar pelo mesmo – tem alguma mensagem a deixar?
Uma das mensagens que circulam e que eu ouço, passa por evitar os vícios, como o tabaco e o álcool. Portanto, parte dos cancros também é isso. Por outro lado, que se faça mais atividade física, que deixem as suas casas e que saiam. As casas são só para dormirmos, saiam.

A alimentação também tem muito a ver com a doença. Do mesmo modo, devemos prestar atenção regular ao nosso corpo, porque às vezes são pequenas coisas a que não ligamos, e com as quais não estamos a contar, mas que aparecem.